Contemplar os mistérios divinos

Ir. Ariane Heringer Tavares, EP

Em quantas ocasiões tivemos a oportunidade de contemplar o mar, algo tao misterioso, imenso e impactante! Às vezes tranquilo, deixando-se acariciar pelo sol; às vezes, demonstrando uma majestosa força no ímpeto de suas ondas. Quem de nós poderia afirmar que, colocado diante de tal grandeza, não se sente pequeno e impotente? Se isso acontece em relação a uma criatura mineral, tão abaixo da natureza humana, mais ainda se passa em relação aos mistérios divinos.

Sendo os homens seres limitados e contingentes, não podem abarcar, com sua inteligencia, todas as realidades sobrenaturais, sobretudo aquelas que tangem diretamente ao Ser por excelência que é o próprio Deus. Com razão, ensina a doutrina da Igreja: “De Deus sabemos muito melhor o que não é do que aquilo que é”.1 De fato, para colocar em palavras humanas o inefável mistério divino, valemo-nos de metáforas e analogias seja pela via positiva — atribuindo a Deus qualidades dos seres criados em grau máximo e infinito — ou pela via negativa — excluindo d’Ele qualquer imperfeição.

Pela via positiva, distinguem-se em Deus nove atributos: perfeição, bondade e beleza infinitas, imutabilidade, imensidade e ubiquidade, infinidade, eternidade, unicidade e simplicidade; a respeito da qual discorreremos agora.

Que Deus é absolutamente simples, o ensinou o Papa Inocêncio III no IV Concílio de Latrão, sendo doutrina reafirmada em concílios posteriores:

Cremos e confessamos firmemente que um só é o verdadeiro Deus eterno e incomensurável, imutável, incompreensível, onipotente e inefável, Pai e Filho e Espírito Santo: três pessoas, mas uma só essência, substância ou natureza absolutamente simples”. (DH 800)

Se analisarmos o mundo que nos cerca, comprovaremos que tudo o que existe recebeu o ser em um determinado momento. Assim, uma mesa não passa a existir sem a ação do marceneiro. Além disso, não seria difícil perceber que todas as coisas criadas estão em contínuo movimento: passam-se os meses e as estações; nascem uns, morrem outros… Por sua vez, todas as criaturas corpóreas são compostas de matéria e forma que as determina. No homem, por exemplo, a alma dá forma e vida ao corpo. Segundo Fílon de Alexandria, um corpo sem alma não passa de um mero cadáver. Se analisamos bem, constatamos que todas as criaturas são de natureza composta, seja por essência e existência, potência e ato ou matéria e forma.

Ao contrário do que acontece no mundo visível, onde todas as coisas são formadas por partes ou compostas de seres diferentes, em Deus não há partes nem composição, pois Ele é puro Espírito.2 Ele é absolutamente simples, incompatível com toda composição, multiplicidade e matéria, sejam ela físicas, metafísicas ou lógicas. Dizer que Deus é simples equivale a afirmar que Ele está infinitamente acima de todo o criado, não contendo em si nenhuma mescla de potência posto que, como ensina o Doutor Angélico, Deus é “ato puríssimo”3, sendo por consequência forma pura. Ainda que em diversas passagens da Sagrada Escritura haja alusões ao braço poderoso do Senhor e às maravilhas realizadas por sua mão direita, não significa que Deus tenha um corpo e, portanto, matéria. Somos nós que atribuímos tais características a um Ser puramente espiritual para podermos compreender melhor sua maneira de operar. N’Ele não se distinguem nem sequer essência e existência já que Ele mesmo revelou: “Eu sou aquele que sou”. (Ex 3,14) Com efeito, Deus é espírito perfeitíssimo e puríssimo e, portanto, indivisível e simplíssimo.

Dada a fragilidade de nosso intelecto, não somos capazes de abarcar a fundo essa doutrina que só se tornará inteiramente clara nos céus onde, iluminados pela luz da glória, veremos a Deus face a face “como Ele é (Jo 3, 2). Entretanto, a Providência deseja que, já nesta terra, possamos vislumbrar algo de sua simplicidade impressa nas criaturas, sobretudo nos homens, criados à sua imagem e semelhança.

Com frequência na história dos santos podemos encontrar fatos que revelam, de forma especial, algum aspecto de Deus. Ora será a caridade, ora a obediência; aqui a pobreza, lá a magnificência, de acordo com o bem que deve ser difundido naquele momento. Mas, como é possível criaturas compostas manifestarem a simplicidade absoluta de Deus?

Claro está que não se trata de representá-la essencialmente e sim de forma analógica. Em geral, as almas virtuosas são simples uma vez que são desprovidas das complicações provenientes dos vícios. Sendo assim, essas almas são um terreno fértil para a ação da graça e atendem com inteira doçura aos chamados divinos, sejam eles interiores ou exteriores através do universo criado.

Para que possamos compreender melhor, tomemos por exemplo Santa Teresinha que vivia muito simplesmente a vida ordinária de uma doente grave, mas sempre alegre e satisfeita. Na enfermaria do convento, em uma cama, inclinava-se para contemplar o pôr-do-sol, alegrava-se com a vista das estrelas no céu e um dia, quando mudaram a posição da cama exclamou: “ Oh! Como estou contente! Poder admirar a folhagem rubra da vinha virgem”.

De tal forma essa simples visão da natureza — se considerada apenas com os olhos humanos — elevava a alma de Santa Terezinha à contemplação d’Aquele que é a Suma Beleza que, apesar dos grandes sofrimentos da alma e do corpo, estava sempre alegre.

Se queremos ser simples e contemplar a glória de Deus, não só admiremos, mas imitemos as virtudes dos santos. Como dizia o grande Santo Agostinho: “O que é seguir senão imitar?”4 Ser-nos-á, assim, assegurada a felicidade da pátria celeste onde, com os Anjos e todos os santos, entenderemos facilmente os inefáveis mistérios divinos.

1 ROYO MARÍN, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p. 45.
2 INSTITUTO TEOLOGICO SAO TOMÁS DE AQUINO .- 1NSTITUTO FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO TOMISTA. Deus… Quem é Ele? São Paulo. Lumen Sapientiae. 2012. p.41.
3 TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica. I. q.2. a3.
4 AGOSTINHO, Santo. De sancta Virgin. 27 (PL 40, 441): “Quid est enim sequi, nisi imitan?”

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